Era inverno de um frio úmido que caía uma garoa fina sobre a
cidade. Mas Lucineide não podia faltar ao seu oficio de dar prazer aos homens e
mulheres que a procuravam. Na sua cabeça sonhadora, o seu trabalho tinha o
propósito de cuidar das carências e fechar as feridas daqueles seres que tinham
olhos puros mas mão calejadas. Mesmo com a dor exposta, o olhar era de uma
criança que se perdeu da mãe. Que se perdeu na mudança. Debaixo de um casaco de
pele já carcumido pelas traças, ela trazia uma lingerie de renda vermelha toda
transparente. Já não era mais moça, mas ainda tinha um brilho de encantamento
pela vida. Como se transformou nessa mulher da vida eu não sabia. Isso não demonstrava.
Guardava dentro dela as angustias dos amores não vividos e
sonhos que não foram encantados. Prostituta por ofício. Mas não desgrudava de
um terço de contas vermelhas que sempre trazia no pescoço. No fundo, era uma
prostituta beata. Às vezes, rezava.
Mas Lucineide parecia viver em um mundo só dela. Um mundo de
contos de fada.
No mesmo banco da praça, sentava com as pernas cruzadas e
seios à mostra. No colo, sempre um livro com capa diferente. Enquanto os
clientes não se aproximavam, ela juntava cuidadosamente as sílabas, depois as
palavras, e com um pouco mais de dificuldade ía formando as frases. Nunca
aprendeu a ler na escola ou teve auxílio de professores. Analfabeta de
nascença.
Dos programas ocasionais tirava o sustento para o quartinho
com banheiro compartilhado, a comida e o cigarro. Podia até viver sem amor, só
que não sem um trago. Sem o cigarro ela era solidão.
Já havia se desapegado das culpas dos abortos feitos por
precisão. Não tinha o oficio de ser mãe. Cuidar de si mesma era seu destino e
sua sina. Se orgulhava de não ter o vicio das drogas e dos amores não
correspondidos. Não tinha apego á quase nada, a não ser das poucas e intensas
paixões.
Não gostava de enterrar os seus mortos, repetia que preferia
as coisas vivas, como o murmúrio dos ventos e o cheiro adocicado das damas da
noite. Como era doce a prostituta Lucineide. De tanto juntar as palavras acabou
rabiscando uns pequenos versos. Prostituta poeta era ela.
Gozou tanto na vida, que acabou tomando gosto pelo sexo.
Ás vezes ficava tão dentro de um livro e com os olhos presos
nas palavras, que por um momento se esquecia quem era. E sonhava que voltava a
ser criança e brincava com a boneca de pano que era sua amiga inseparável.
Depois fechava os olhos e caía dentro de um abraço. Por um instante se esquecia
do seu oficio ajeitando seu casaco. Mas os olhos não abriam por nada, para não
acordar e se perder nesses braços. A prostituta poeta nunca teve brechas nesse
mundo. Quando pequena, aprendeu a ver as horas olhando para o sol e as
estrelas. E via a chuva pela janela. Não conhecia o luar.
Nem sabia do barulho das ondas com os ouvidos colados às
conchas do mar.
Parece que há um mistério por trás dos sonhos que
transformaram a menina que era amiga das estrelas em uma mulher da vida. No
céu, abrigava os seus sonhos.
Depois de tanto abandono e de se sentir tão solitária,
Lucineide deitava o seu sexo por ai. Como dama da noite não sentia mais só. Sua
boneca de pano também se perdeu na mudança. E por falta de ter com quem falar,
aprendeu muitos silêncios e também a arte de saber escutar.
A prostituta era uma mulher da vida sábia e poeta.
Não tinha nada e tinha tudo, porque no seu histórico
continha todos os segredos do mundo.
Já tinha ouvido tanta história nessa vida que desenvolveu um
pequeno faro para as mentiras. De longe já sentia o cheiro do medo. Não dos
seus.
Dos seus medos quase havia se esquecido.
A prostituta poeta era livre. Perdeu seus medos escrevendo
poemas com as palavras que aprende dos livros.
Muito bom esse texto! Prostituta por falta de opção... não teve escolha... Certamente os livros foram companhia que ajudaram na vivencia dos sonhos que não foram realizados.
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