Para tentar responder essa questão, talvez seja
necessário considerar que não existe, quando falamos em identidades, uma forma
de ser que seja correta ou definitiva. As pessoas estão em constante
transformação, variando seus interesses e desejos, reorganizando seus projetos,
alterando práticas cotidianas e a forma como se percebem e como veem os outros.
As identidades coletivas (de grupos, sociedades) e individuais vão sofrendo a
influência das experiências de vida, modelos, regras e discursos que nos
atravessam, produzindo novos significados e sentidos para as várias dimensões
das nossas vidas – profissional, familiar, amorosa, etc.
Durante muito
tempo prevaleceu, na maior parte das sociedades, a ideia de que as diferenças
entre homens e mulheres eram naturais e definidas por diferenças dos corpos
biológicos. As mulheres teriam nascido com uma aptidão maior para o cuidado com
o lar e os filhos, enquanto os homens tinham maior facilidade para trabalhar fora,
fazer maior esforço físico e assumir cargos de chefia, entre muitas outras
concepções que marcaram as distinções entre os sexos. Esse mesmo discurso era,
notadamente, utilizado para justificar a subordinação feminina e as relações
desiguais entre homens e mulheres.
Quando o
feminismo ganhou fôlego, após a segunda metade do século XX, algumas
pesquisadoras propuseram substituir a noção de “diferenças entre sexos” por
“diferenças entre gêneros”, como forma de mostrar que a cultura, por meio de
valores, práticas e discursos, influencia a construção do ser homem e ser
mulher. O conceito de gênero procura evidenciar que esses modelos são
aprendidos ao longo da vida e se alteram ao longo do tempo, em diferentes
contextos históricos e sociais. É, por exemplo, muito diferente ser uma mulher
no Brasil ou no Afeganistão, assim como ser uma mulher em 1930 ou em 2010.
Os espaços de
socialização, sejam institucionais ou informais, oferecem, a todo tempo,
modelos que passam a ser incorporados desde a infância. Um exemplo disso são as
famílias, quando definem os brinquedos “de menino” – como a bola e a espada – e
os “de menina” – como a boneca, o fogãozinho e jogo de panelas. O mesmo vale
para as roupas, os móveis e as cores de um quarto e tantas outras escolhas que
evidenciam uma determinada forma de olhar para a criança. Outro espaço de
convívio importante na nossa formação é a escola, onde os professores expressam
e afirmam, na sua ação pedagógica, valores, ideias e comportamentos que
consideram adequados para cada sexo.
À medida que
nosso universo de relações vai se ampliando, torna-se importante também a
influência (...) de tudo aquilo que vamos percebendo como expectativas sociais e
as possibilidades de sermos reconhecidos socialmente. Isso vai dando indicações
de como devemos lidar com as emoções, como devemos nos comportar sexualmente,
fazer escolhas profissionais, etc.
Quando se
pensa a construção de identidades na sociedade moderna, não devemos subestimar o
poder que os padrões de consumo e a cultura de massas exercem sobre as pessoas
e, de forma muito especial, os/as jovens. Videoclipes, revistas, páginas da
web, programas de televisão, propagandas e produtos por elas oferecidos são
alguns dos elementos que exercem grande influência nos comportamentos, na
formação dos gostos, padrões estéticos e outras formas de viver e expressar
identidades. Certamente, neles estão presentes modelos de gênero que são mais
ou menos valorizados. Um padrão em filmes de ação é mostrar homens fortes e
guerreiros, que usam armas e conquistam belas mulheres, ao mesmo tempo em que
revistas trazem seções e mais seções que ensinam as mulheres a cuidar do corpo
para serem mais desejáveis e “femininas”.
O
questionamento de certas barreiras que foram historicamente erguidas é inevitável
quando pensamos numa sociedade mais democrática e menos desigual. Por que o
homem agressivo, dominador, que por vezes coloca em risco sua saúde e
integridade física é ainda tão valorizado? Por que tantos homens deixam de ver
a paternidade como uma forma importante e saudável de realização da sua
masculinidade? Por que a mulher valorizada é aquela que possui o corpo
considerado “desejável” pelos homens? Qual a possibilidade de ser aceita quando
decide viver de forma autônoma, quando expressa interesse de viver sua
sexualidade sem ser estigmatizada? Por que ainda se encontram justificativas
para legitimar a violência contra a mulher? Quando as identidades estão
aprisionadas por modelos rígidos e ao mesmo tempo tão arraigados, tão comuns,
que nem sequer nossa adesão a eles é percebida, nossa capacidade de escolher e
transformar a realidade é consideravelmente reduzida. Por outro lado, à medida que
nos damos conta desses modelos e compreendemos que eles são frutos de
construções culturais, passamos a ser capazes de escolher e atuar como
produtores, promovendo a transformação de valores culturais e tendo maior poder
de realização dos nossos desejos, interesses e projetos pessoais e coletivos.
Fonte:
Texto retirado do material Gênero fora da caixa: Guia prático para
educadores e educadoras. Projeto Juventude, Gênero e Espaço Público, 2011.
Instituto Sou da Paz.
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